terça-feira, outubro 23, 2012

A minha Religião é o Novo.


A minha Religião é o Novo.
Este dia, por exemplo; o pôr do Sol,
estas invenções habituais: o Mar.
Ainda:
os cisnes a Ralhar com a água. A Rapariga mais bonita que
ontem.
Deus como habitante único.
Todos somos estrangeiros a esta Região, cujo único habitante
verdadeiro é Deus (este bem podia ser o Rótulo do nosso
Frasco).
Dele também se podia dizer, como homenagem:
Hóspede discreto.
Ou mais pomposamente:
O Enorme Hóspede discreto.
Ou dizer ainda, para demorar Deus mais tempo nos lábios ou
neste caso no papel, na escrita, dizer ainda, no seu epitáfio que
nunca chega, que nunca será útil, dizer dele:
em todo o lado é hóspede,
e em todo o lado é Discreto. 

Gonçalo M. Tavares, in "Investigações. Novalis"

segunda-feira, outubro 08, 2012

Mas por onde eu caminhe levarei o teu olhar

 
Já não se encantarão meus olhos em teus olhos,
já não se achará doce minha dor a teu lado.

Mas por onde eu caminhe levarei o teu olhar
e para onde tu fores levarás minha dor.

Fui teu, foste minha. Que mais? Juntos fizemos

um desvio na rota por onde o amor passou.

Fui teu, foste minha. Tu serás de quem te ame,

Do que corte em teu horto aquilo que eu plantei.

Eu me vou. Estou triste: mas eu sempre estou triste.

Eu venho dos teus braços. Não sei para onde vou.

…Desde teu coração diz adeus um menino.

 
E eu lhe digo adeus.
Pablo Neruda,
in Presentes de um Poeta (Arteplural ed.)

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sábado, outubro 06, 2012

a flor


No quinto dia, ainda por causa da ovelha, foi-me revelado o seguinte segredo da vida do principezinho. Fez-me uma pergunta súbita, sem preâmbulos, como se fosse fruto de um problema meditado em silêncio durante longos dias:
- Se uma ovelha come arbustos, também pode comer flores?
- Uma ovelha come tudo o que encontra.
- Mesmo as flores que têm espinhos?
- Sim. Mesmo as flores que têm espinhos.
- Os espinhos não servem para nada, é pura maldade da parte das flores!
- Oh!
O principezinho ficou calado por um momento, depois atirou-me com uma pontinha de rancor:
- Não acredito. As flores são fracas. São ingénuas. Tranquilizam-se como podem. Julgam-se terríveis com os seus espinhos ...
- Conheço um planeta onde existe um senhor de tez escarlate. Nunca aspirou o perfume de uma flor. Nunca contemplou uma estrela. nunca amou ninguém.
- Se alguém gostar de uma flor da qual apenas existe um único exemplar em milhões e milhões de estrelas, isso bastará para que se sinta feliz quando as contempla. Diz para consigo:
"A minha flor está lá, em qualquer parte ..."


Não pôde dizer mais nada. Desatou subitamente a soluçar. Anoitecera. Larguei as ferramentas. Queria lá saber do martelo, do parafuso, da sede e da morte. Havia uma estrela, num planeta, o meu, a Terra, um principezinho a consolar. Tomei-o nos braços. Embalei-o. Dizia-lhe: "A flor que tu amas não corre perigo ... Vou desenhar um açaimo para a tua ovelha. Vou desenhar uma armadura para a tua flor ... 

O Principezinho, Antoine de Saint-Exupéry