quinta-feira, novembro 01, 2012

Anna

E um dia, em que o hospital estava praticamente deserto - entre o Natal e o Ano Novo, a semana mais sossegada do ano - vi uma jovem na cafetaria, a ler Baudelaire. É raríssimo ver-se alguém, nos Estados Unidos, a ler um poeta françês do século XIX, à hora do almoço. Sentei-me à mesa dela. Era russa, com a maçãs do rosto salientes, de grande olhos negros e uma expressão simultaneamente reservada e extremamente perspicaz.

Anna não me abandonou quando descobrimos que eu tinha uma doença que podia ser fatal. Julguei ter encontrado no seu rosto, tão calmo e belo, o amor materno absoluto e incondicional que nunca tinha conhecido. Ela tornou-se o rochedo sobre o qual construí a minha vida enquanto jovem adulto.

Quando estava sozinho e fechava os olhos, a sua imagem surgia diante de mim e eu sentia a sua presença. Parte dela entrou em mim e viveu no meu corpo.

Quando saí da minha primeira cirurgia, com a cabeça rapada e marcada com uma cicatriz em forma de L, perguntei-lhe timidamente se queria casar comigo. A sua resposta direta, sem hesitações e profundamente sentida, foi um dos momentos mais belos da minha vida.

Lembro-me da nossa lua-de-mel num barco de rio no estuário a Cape Fear. Eu não era grande navegador. Passámos boa parte desses poucos dias sem eletricidade, água e combustível. Porém, Anna era tão bem disposta e estávamos tão apaixonados, que cada um destes incómodos era uma oportunidade para partilhar e rir, cozinhar, fazer amor ou contemplar as estrelas quando encalhámos longe de tudo e ficámos à espera de auxílio que só chegaria no dia seguinte.

Depois disso toda a nossa vida em conjunto parecia inspirada por essa despreocupação. A lua-de-mel durou dois anos. Eu sentia-me invencível. Desde que estivéssemos juntos, podíamos enfrentar qualqer situação.

Pela primeira vez, tive a impressão de viver uma vida boa.

Então, Anna quis ter um filho.  O nascimento do meu filho foi o segundo dia mais belo da minha vida.
                                                  
Sasha dormia muito mal. De noite, levávamo-lo para a nossa cama e Anna não queria largá-lo. Durante o dia, só dormitava nos braços dela..

Em cinco anos, não passámos um fim-de-semana sozinhos. Parte de mim admirava este amor materno. Porém, outra parte não conseguia tolerar a intensidade desta nova relação que estava a afastar-nos.

Em breve, não tardei a ficar tão só quanto estivera antes de a conhecer. Perdera toda a esperança de recuperar o nosso relacionamento de casal. De certo modo , a minha vida revertera para o padrão da infância: amor suficiente para sobreviver e obrigações que me esforçei por cumprir, para manter as aparências.

Foi precisamente no momento em que não conseguia continuar - apenas duas semanas depois de ter decidido sair de casa e acabar com um casamento que já não existia - que soube que o meu cancro voltara.
Anticancro - Um Novo Estilo de Vida, David Servan-Schreiber

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